A Florbela Espanca

Amada, por que eu tive a tua voz
Depois que o Nada teve a tua boca?
A lua, em sua palidez de louca,
Brilha igual sobre mim, e sobre nós!...


Porém como estás longe, como o algoz
De um só golpe sem fim — a Morte — apouca
Os gritos dos que esperam, a ânsia rouca
Dos que atrás têm seu sonho, os grandes sós!


Aqui não brilha o mundo que engendraste
Como o manto de um deus, e astros sangrentos
Não nos rolam nas mãos da imensa haste.


E só estes olhos meus, que nunca viste,
Se incendeiam, vitrais na noite atentos,
Voltados para o chão aonde fugiste!

O Bordado Cruel

Quando era noite, atrás daquela porta,
junto a uma vela duas velhas riam
Matando aos poucos uma aranha torta.


E a alegria que elas dividiam
Poucos tiveram já no mundo um dia,
Mas os que a achavam sempre a bendiziam.


Cheia de medo, a criatura fria
Dançava horrível rente de uma chama
Que lentamente o corpo lhe roía,


E as velhas rindo a observar da cama
Iam falando sobre de que modo
Com dor mais lenta um corpo vil se inflama.


Espécie estranha de um vivente lodo,
Sendo corcunda e só com sete pernas
A aranha uivava por seu corpo todo


Que se expandia em inchações externas
Causando às velhas, com o vermelho horrendo
Do seu ardor, as sensações mais ternas...


Emocionadas, com as mãos tremendo,
Vieram então com um bando de alfinetes
Que em cada pata foram se prendendo,


E a aranha presa de mil cacoetes
Foi só os espinhos de uma prata ardente
Que a recobria em infernais coletes.


E nesta arte foram indo em frente,
Depois agulhas, e um perfume ardido,
E ao fim de tudo uma tesoura ingente,


Até que o fogo e o animal vencido
Murcharam juntos sobre a mesa irada
Em mil pedaços de um negror transido,




E ambas as velhas, conhecendo o nada,
Com face imensa devoraram tudo
Que lhes restava da fatal jornada.


Enquanto, a olhá-las, um retrato mudo
De seu marido ia chorando as dores
Que o recobriam no ancestral escudo,


E todo o chão ia se abrindo em flores
E uma criança, que ninguém notara,
Pela janela olhava sem temores


E ia crescendo, e de uma forma rara,
Enquanto as velhas, enxugando as portas,
Varriam tétricas, na noite clara,


Todo o amargor das profecias mortas!

Neste Instante

Neste instante, neste,
Vê como sonhaste
Tudo o que viveste.


A vida é um engaste
De pedra roubada,
Mas nunca o notaste.


Nada deixou nada.
Dormimos a vida.
Nesta madrugada.


Nesta hora escolhida,
Tua alma, em teu quarto,
Virgem e esvaída,


Faz seu próprio parto.

Pergunta

Será realmente a face do Universo
A face da Medusa,
Esta geral destruição confusa,
Este criar perverso,


Ou será a máscara, álgida e estrelada,
Onde os cometas passam,
Turva de treva, rútila de nada,
E onde olhos se espedaçam?

História

Não é minha esta casa, aí entrarei no entanto,
Quebrarei o portão, marcharei entre as flores,
Encherei meu pulmão com os estranhos odores
Do jardim adubado a sêmen, sangue e pranto.


Porei a porta abaixo, enfrentarei o espanto
Dos vultos me fitando; e apesar dos bolores
Envergarei sem medo os trajes de idas cores,
Nas suas mãos beberei, entoarei seu canto!


Com os corpos rolarei de milhões de mulheres
Sem corpo. Ei-los que já me saúdam e me aclamam,
Meus perdidos avós, desamparados seres.


Estendem-me suas mãos como a um filho que os salva.
Deles vim, mas é a mim que eles agora clamam
A vida, como a um pai, um sol sonhando na alva.

O Jacente da Sé

Ele está morto, mas está atento:
Segura a espada como se a arrancasse.
Se a trombeta do Juízo agora soasse
Ei-lo a sacá-la num furor sangrento.


Não saberia, a ouvir tal som cruento,
Se de mouros ou de anjos se tratasse,
Olhos cansados sonham na sua face,
Mãos e ouvidos aguardam seu momento...


Quando o angélico estrondo o estremecesse
Se ergueria da pétrea e heróica prece
Contra uma grei feroz já bem vizinha,


Castelhanos, infiéis... Mas quando achasse
Só os arautos de Deus, e então chorasse,
Guardaria sua espada na bainha.

Menos

As vidas passadas
Talvez tenham tido
Grandes madrugadas
Com maior sentido
Do que os nossos nadas.


Mas em nós saltita
Seco, o coração,
Esponja maldita
A se inflar num vão
Onde ninguém fita.


A pular vermelha,
A encolher-se langue,
Suja bomba velha
Bêbada de sangue
Que só o nada espelha.


Que se estique e encolha
Até a hora em que estoure,
Ridícula bolha
Sem um só que a chore,
Sem quem a recolha.


E então tombe gorda
Dentro de si mesma,
Brinquedo sem corda,
Ressecada lesma
Que já nada acorda.


E ali, sem mais ânsia,
Imprestável odre,
Suma-se à distância,
Sem a dança podre
Que fez desde a infância.


Mas de ao menos nós
Que o sofremos tanto,
Que ele deixe após
Tanto pranto e espanto
Viva a nossa voz.